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Avanços no estudo de fungos e bactérias: o jardim de Suely Gomes

Em meados dos anos 1970, quando pesquisas sobre genética e biologia floresciam no Brasil e traziam ao mundo informações inéditas sobre o funcionamento dos organismos, a física Suely Lopes Gomes se aventurou nos estudos sobre fungos e bactérias. Os projetos que nasceram dessa escolha renderiam à pesquisadora uma carreira de quase meio século, com destaque em áreas como bioquímica e biologia molecular, e serviriam de inspiração para toda uma geração de cientistas – seja diretamente, por meio das dezenas de alunos que ajudou a formar, ou indiretamente, através das iniciativas e trocas científicas que liderou. Aposentada desde dezembro de 2022, Suely Gomes e suas contribuições continuam a render frutos nos campos em que atuou, mantendo seu legado vivo, atual e cada vez mais presente na ciência brasileira.

Suely Gomes iniciou sua trajetória acadêmica ainda na graduação, com projetos voltados à física nuclear. Anos depois, já graduada e no exterior, reencontrou na interface entre a física e a biologia uma antiga paixão que nasceu ainda no Ensino Médio: a genética. “Quando cheguei na Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, para fazer mestrado, fiquei sabendo de um departamento multidisciplinar que unia biofísica e microbiologia e pedi transferência para lá; eu fiquei fascinada”, relembra a pesquisadora, que logo começou a trabalhar com bactérias e defendeu sua tese de mestrado sobre a espécie modelo Escherichia coli. Nesse período, a biologia molecular ainda era uma semente no Brasil. Ao retornar ao país, Suely Gomes foi integrada ao Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), onde passou a compartilhar e expandir os conhecimentos que havia adquirido em sua viagem.

Com um perfil curioso e dedicado, durante o doutorado, a pesquisadora debruçou-se sobre as bancadas para conhecer e investigar o fungo Blastocladiella emersonii, um tema completamente novo para ela. No entanto, um pós-doutorado na universidade americana Albert Einstein College of Medicine a trouxe de volta para o mundo das bactérias – dessa vez, com a espécie Caulobacter crescentus. Estavam, assim, estabelecidos os dois principais modelos de pesquisa que acompanhariam Suely Gomes por quase 50 anos e ajudariam a formar 21 doutores, 5 mestres e 17 pós-doutores, todos orientados ou supervisionados por ela. “Eu não consegui me desvencilhar de nenhum dos dois organismos, eu tinha interesse nos dois”, comenta.

Suely Gomes – foto cedida por Regina Lúcia Baldini

Avanços científicos e tecnológicos para a ciência mundial

Unindo seus dois interesses, Suely Gomes firmou-se no IQ como líder de pesquisas em regulação da expressão gênica em microrganismos. Lá, foi corresponsável pela criação do Serviço de Síntese de Nucleotídeos Trifosfato Radioativos para o Programa de Engenharia Genética (PRONAB), iniciativa que aconteceu na metade dos anos 1980 e contribuiu para grandes avanços na comunidade científica nacional. Após ocupar a posição de Secretária na Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular (SBBq) entre 1988 e 1990, recebeu o título de Professora Titular do IQ em 1997 e, em 2000, passou a chefiar com maestria e proatividade o Departamento de Bioquímica do Instituto. 

Concomitantemente aos cargos de destaque, a pesquisadora participou também da organização e implementação do Serviço de Sequenciamento de DNA do IQ, uma iniciativa pioneira pela qual foi responsável até 2017. “Era um serviço do departamento que servia tanto a USP como muita gente de fora, também”, explica Regina Baldini, ex-orientanda e colega de Suely Gomes. A implementação da plataforma surgiu da necessidade de avançar nos projetos que Suely Gomes participava. Entre eles, o ramo que investigava a bactéria Xylella fastidiosa no Projeto Genoma no Brasil, que resultou na determinação do primeiro genoma de um patógeno de plantas no mundo e foi um marco importante no avanço científico do país. A pesquisadora fez parte do seleto grupo de cientistas que integrou a equipe, ao lado de nomes como Aline Maria da Silva e Marilis Marques. “Me lembro que ela sempre foi uma pessoa extremamente disponível, muito séria e muito dedicada”, relata Marilis Marques, também ex-orientanda de Suely Gomes.

Além de contribuir diretamente para posicionar a USP e, de forma mais abrangente, o Brasil, como um dos destaques nas pesquisas sobre genética, a criação do Serviço de Sequenciamento de DNA também ajudou a fortalecer a Universidade e fez parte de diversos outros trabalhos lá desenvolvidos. “Isso trouxe muitos recursos para o departamento, já que foi um dos primeiros sistemas desse tipo a ficar disponível”, ressalta Regina Baldini. A gestão motivada e organizada de Suely Gomes permitiu que o serviço se consolidasse e se mantivesse em funcionamento ao longo das décadas. Hoje, ele ainda está disponível sob a responsabilidade da Central Analítica do IQ e serve tanto usuários da USP como pesquisadores de outras Instituições de ensino.

Suely Gomes e Regina Lúcia Baldini – foto cedida por Regina Lúcia Baldini

Pesquisa básica e aplicada para o progresso 

Os trabalhos desenvolvidos durante o sequenciamento de Xylella fastidiosa e o maquinário instalado no departamento trouxeram repertório e aparatos para que a equipe de Suely Gomes, já bem estabelecida na década de 2010, também analisasse o genoma do fungo Blastocladiella emersonii, a segunda principal linha estudada pela pesquisadora. O trabalho, que fez parte da tese de doutorado da aluna Gabriela Mól Avelar, resultou na descoberta de uma proteína responsável pela percepção e resposta desse fungo à luz, permitindo, por exemplo, que nadem com precisão em direção à luz em uma fase inicial de seu ciclo de vida.

Embora as análises tenham sido focadas no fungo, as semelhanças identificadas com mecanismos humanos permitiram implicações surpreendentes. O grupo revelou que a percepção visual do fungo utiliza componentes que também estão presentes na visão de vertebrados, como a rodopsina – que atua como um sensor de luz – e o segundo mensageiro GMP cíclico – ligado a processos de sinalização. “Ninguém tinha descrito a fusão que encontramos entre a rodopsina e a guanilato ciclase”, destaca Suely Gomes.  “Por conta desse trabalho, um professor da Alemanha entrou em contato com ela e desenvolveu um tipo de sensor que utiliza uma modificação dessa proteína para produzir GMP cíclico em resposta à luz em células de mamíferos”, comenta Regina Baldini.

“Era ciência pela ciência, não apenas para desenvolver um remédio”

Para ela, seu trabalho e as descobertas dele decorrentes são apenas um dos muitos exemplos de como a chamada pesquisa básica – aquela voltada para o avanço do conhecimento, sem a necessidade imediata de aplicações práticas – também tem papel fundamental no progresso científico. “Fazer pesquisa aplicada é muito importante, claro, mas também precisa haver espaço para estudar organismos porque são interessantes ou porque têm características que ainda não foram bem descritas”, afirma. “Às vezes, em um microrganismo que não tem absolutamente nada de patogênico, você encontra um gene que pode ser usado em uma célula de mamífero para investigar o papel de GMP cíclico, por exemplo”, aponta a pesquisadora, citando o trabalho liderado por Gabriela Avelar. Foi desta forma, por exemplo, que a proteína do fungo contribuiu para a área de Optogenética, que trata do desenvolvimento de ferramentas que combinam genética e bioengenharia em estudos envolvendo, por exemplo, circuitos neuronais de células específicas. 

Suely Gomes ressalta ainda que as diferenças entre os contextos da pesquisa científica no passado e no presente podem fazer com que organismos não patogênicos, como o fungo Blastocladiella e a bactéria Caulobacter, possam ser menos incentivados em um futuro próximo. “Sinto que tive sorte, porque estava trabalhando em um período em que pude escolher o organismo de estudo sem precisar me preocupar se ele causava doença ou não. Era ciência pela ciência, não apenas para desenvolver um remédio”, explica. “Hoje, a gente acaba sendo, de certa forma, pressionado pelas agências financiadoras a fazer pesquisas mais aplicadas. Aí, vem a pergunta: ‘Mas por que estudar esse organismo, ele causa alguma doença?’ Não, não causa. E isso já pode se tornar um obstáculo”, completa.

Suely Gomes e Marilis Marques – foto cedida por Regina Lúcia Baldini

Criou raízes na USP e espalhou sementes pelo mundo

Ao longo de cinco décadas de dedicação, Suely Gomes cruzou os caminhos de centenas de colegas e colaboradores. Marilis Marques, primeira aluna de pós-graduação orientada por ela, relembra detalhes do dia a dia ao lado da pesquisadora – antes, durante e após atuarem juntas no projeto Xylella. “A seriedade, a responsabilidade, a postura e a confiança nos resultados são algumas das coisas que mais me marcaram. Ela sempre nos deu um bom exemplo de conduta científica e isso é importantíssimo”, aponta a pesquisadora, que hoje lidera estudos sobre Caulobacter crescentus no Laboratório de Fisiologia e Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.

No IQ, Regina Baldini herdou as dependências do Laboratório da Regulação da Expressão Gênica em Microrganismos, antes liderado por Suely Gomes. “É uma responsabilidade muito grande. Ela sempre foi muito responsável e competente, o laboratório sempre foi muito bem equipado e ela tomava conta das coisas”, diz. “Temos centrífugas de mais de 30 anos que estão funcionando perfeitamente, nossas bancadas ainda são da época que ela atuava aqui… Temos a responsabilidade de manter esse legado”, complementa a pesquisadora, que também aponta que o clima tranquilo no laboratório de Suely Gomes e as interações entre os membros do grupo foram muito importantes em sua trajetória acadêmica.

Fora da USP, as sementes plantadas por Suely Gomes também germinaram. Ela fez parte da formação de pesquisadores e professores que, hoje, ocupam posições de destaque em grandes instituições nacionais e internacionais, como Julio Cezar Franco de Oliveira e Rogério Ferreira Lourenço, docentes da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Cristina Elisa Alvarez Martinez, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Alguns de seus alunos também construíram carreiras fora do Brasil, em países como a Argentina (a exemplo de Flávio Junqueira de Souza, que está na Universidade de Buenos Aires, e Karina Fabiana Ribichich, na Universidade de Santa Fé) e a Alemanha (como Christian Kohler, na Universidade de Greifswald), espalhando mundo afora os reflexos de sua forma de trabalhar. “Cada um seguiu o seu caminho e criou a sua carreira. A gente contribui lá atrás, né? Uma sementinha que a gente colocou, mas que germinou por conta deles”, ressalta Suely Gomes.

Os frutos do legado de Suely: influência e inspiração

Durante sua atuação no IQ-USP, Suely Gomes organizou e promoveu seminários entre diferentes grupos do departamento, além de pesquisadores e estudantes do ICB. A proposta visava estimular um ambiente integrado e interativo, além de possibilitar trocas interdisciplinares entre os participantes. “A gente tinha um calendário rotativo com apresentações diferentes a cada semana”, recorda Suely Gomes, que complementa destacando as vantagens dessas reuniões: “essa experiência era muito boa para os alunos, tanto para promover integração e colaboração quanto para o desenvolvimento das pessoas, que precisavam se preparar bastante para apresentar os próprios trabalhos”.

Shaker Chuck Farah, atual vice-diretor do IQ-USP, participou dos encontros desde as primeiras edições, quando era recém-contratado no IQ. “Nessas reuniões, os grupos sempre tentavam se ajudar, mas tudo acontecia de um jeito muito informal. De vez em quando, surgia a ideia de fazer um projeto em conjunto, mas achávamos que ainda não estávamos prontos ou que não era o momento”, relembra. O cenário mudou em meados de 2021, quando, após a pandemia de Covid-19, surgiu uma ideia que reuniria as parcerias estabelecidas nesses encontros em um projeto promissor e de grande porte, o Centro de Pesquisa em Biologia de Bactérias e Bacteriófagos (CEPID B3).

“Estávamos começando a voltar às atividades presenciais quando saiu um edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a FAPESP, para submissão de projetos de Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão, os CEPIDs, na área de biológicas”, diz Chuck Farah. “Sentíamos que, naquele momento, já estávamos maduros o suficiente para isso”, diz. O projeto está em execução desde 2023 e, de acordo com Chuck Farah, diretor do CEPID B3, foi, em grande parte, impulsionado por Suely Gomes. “Sem aquele grupo que se reuniu durante tantos anos, talvez esse projeto nem existisse; boa parte dos envolvidos tinham ligação com ela: eram ex-alunos, ex-colaboradores, ou até alunos de ex-alunos”, argumenta, e complementa dizendo que a pesquisadora é “uma fonte inspiradora, tanto pelo legado científico quanto pelo papel de formação e articulação da comunidade”. O modelo de seminários proposto por Suely é seguido semanalmente pelos membros dos 21 laboratórios vinculados ao CEPID B3.

“Uma sementinha que a gente colocou, mas que germinou por conta deles”

A trajetória de Suely Gomes, seus reflexos na criação do CEPID B3 e na carreira de quem cruzou seus caminhos são provas de que a ciência se faz tanto com dados e descobertas quanto com relações humanas, generosidade e curiosidade genuína. Suas contribuições ultrapassaram os limites dos laboratórios e reverberam, mesmo após sua aposentadoria, em cada pesquisador que ajudou a formar, em cada projeto que ajudou a construir e em cada ideia que estimulou. Suely Gomes representa a força e a importância da ciência feita com paixão, visão de futuro e compromisso com o conhecimento. Seu jardim, cultivado ao longo de décadas, segue florescendo – diverso, fértil e essencial para o ecossistema da ciência brasileira.